A minha amada já tinha esquecido o futuro. Já não queria saber da casa nova, do tecido para forrar os sofás, do Verão seguinte. Estava convencida que estava cheia de metástases. Doía-lhe o corpo todo. Tinha desanimado. Estava preparada para a morte. Só a morte é mais triste. Tinha-se preparado para ouvir o que já sabia, para não se assustar quando lhe dissessem que o cancro na mama tinha voltado e que se tinha espalhado por toda a parte.
Depois - mas não logo, porque não é de momento para o outro que se desmorre - voltou a ver vida pela frente. Reapareceu um horizonte e um caminho até lá, com passos para dar. "São tão raras as boas notícias", disse a médica, "e é tão bom dá-las, vocês não imaginam". Nós não imaginámos. Começámos a chorar. As lágrimas ajudam muito. As dos outros especialmente. Chorar sozinho não tem o mesmo efeito. A Maria João tem chorado por razões tristes. Desta vez estava a chorar de felicidade.
Como chora cada vez que ouve ou lê palavras doces, a dar força, a partilhar a dor, a juntar-se para que ela saiba que há muita gente a sofrer com ela, tal é a vontade delas que ela não sofra. Ou sofra pouco. Embora isto de se ficar vivo também se estranhe um bocadinho"
Porque todos os dias lido com esta realidade, no seu primeiro momento, perdemos a sensibilidade das lágrimas. Porque as primeiras lágrimas não são as da derrota mas as do choque: "como é que isto me pode acontecer a mim?". Porque as palavras não chegam para dizer que tudo vai passar, porque a vontade é de assegurar que tudo vai correr bem, mas o coração não pode estar lá. Porque a distância existe na ausência do toque. A distância tem que ser mantida para não desabarmos com as histórias de vida parecidas com a nossa. Para não desabarmos quando é a nossa tia ou amiga.
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